15.2.05

19 de julho de 2004

Foi uma separação muito difícil para ambos. Durante aqueles três meses escreveram-se diariamente. Nada foi combinado. Quando ele recebeu a sua primeira carta, dois dias depois de ter chegado à grande cidade, respondeu-lhe logo. mas no dia seguinte já tinha uma nova carta para responder. Sentiu-se feliz pela sua atitude e começaram a escrever-se todos os dias, como se fossem o diário um do outro.

Terça-feira era o seu dia favorito, pois recebia três cartas. A de sexta, a de sábado e a de domingo! Subia pelas escadas, ignorando o elevador e abria-as como o máximo de cautela, ficando as mesmas a parecer intactas. Deitava-se depois no sofá, com os pés na parede e lia-as com a felicidade de quem descobre o primeiro amor. Questionava-se muitas vezes se terça-feira também seria o dia favorito dele, mas nunca lho perguntou, nem nunca lhe confessou os motivos da sua infantil preferencia pelas terças-feiras.

Os telefones começaram a ser cada vez menos usados, pois as cartas transmitiam muito mais que o necessário, o supérfluo, as confissões e o delírio. A partir de certa altura foi como se só os correios pudessem ser o elo da sua comunicação.

Algum tempo mais tarde, as cartas deixaram de transportar somente o papel onde assentavam tudo o que se lembravam de contar um ao outro. Passaram também a transportar pequenas coisas que só nos seus mundos faziam sentido. Recortes de jornal. Flores secas. Bigodes de gato e pelo de cão. Bolinhas de esferovite. Fotografias. Areia. e outras coisas estranhas que os faziam sorrir.

Ambos guardavam as cartas que iam recebendo em caixas. Ele, numa caixa de sapatos personalizada com pequenos desenhos e rabiscos seus. Ela, numa caixa comprada à medida e forrada a veludo vermelho. Ele tinha a caixa na mesa que lhe servia de cabeceira no seu quarto alugado. Ela, debaixo da cama. Embrulhado num belíssimo lenço de seda que o irmão lhe trouxe do estrangeiro, que ela não se atreve a usar na rua, apesar do seu encanto. Está à distância do seu braço esticado. Especialmente nas noites em que não consegue dormir e relê as suas favoritas.

Ele é que a ensinara a ser assim. A ela, que era uma fêmea eximia. Sempre de vestido, mas habituada a desembaraçar-se sozinha, a não confiar em ninguém, não sendo sequer mulher de muitas palavras. Ensinou-a a entregar-se. A despir aos outros todas as suas emoções. Tal como ele fazia. Ser mais pura, mais honesta com o mundo, mesmo quando este parecia cruel. Cresceu imenso. Sentia-se mais solta e feliz. E conseguiu concretizar o seu sonho de não comer carne, por muito insignificante que isso pudesse parecer, até a ele, para ela era importantíssimo, pois era um sinal de grande força interior.

A última carta chegou ao fim dos três meses, exactamente. Foi ele que não escreveu durante quatro dias. Perante a ausência das suas respostas, ela também deixou de escrever e sem saber porquê, rejeitou uma chamada dele numa terça-feira à noite. Dormiu mal, mas nunca acedeu a luz, limitando-se a rebolar na cama até à exaustão. Na manhã seguinte quando os seus olhos brilharam ao ver uma carta dele na caixa do correio, não sabiam as lágrimas que iriam derramar pelo resto do dia.

Ele ia regressar, como era suposto, mas traria a sua namorada...

Maria não podia acreditar no que lia! Para além da sua amizade de infância ser para ela ao fim de tantos anos quase um compromisso, quanto mais não fosse porque amaram pela primeira vez com 14 anos numa ínsua debaixo de uma escuridão estrelada com a jura de amizade eterna, ele nunca lhe tinha falado dela nas cartas! Ela contava-lhe tudo do mais banal pormenor do seu dia-a-dia, acreditava que ele também o fazia e afinal ele ocultou-lhe toda uma paixão que viria a culminar no amor e no compromisso. Sentia-se traída. Traída como quando o cão que os padrinhos lhe tinham oferecido com tanto carinho e a quem ela dava tanto amor, lhe arrancou um naco do músculo da perna! e só não a desmanchou mais porque um vizinho da altura, o senhor Cavaleiro, lhe atirou com um machado acima.

Puski não morreu. Maria também não deixou que o matassem. Pediu só, na sua cruel inocência, que o levassem para uma floresta e por lá o abandonassem. E foi isso que decidiu também naquele momento. Deslaçou o lenço da caixa de veludo vermelho, enrolou-o ao pescoço e saiu com a caixa debaixo do braço. Foi ao poço onde Manuel tinha caído quando tinha apenas cinco anos. O poço estava na altura vazio e Manuel só fracturou o braço esquerdo. Naquele dia de verão afogueado, 23 anos depois, o poço estava cheio de água, plantas e pequenos bichinhos; Maria não abriu a caixa. Atirou-a fechada.

Sem nunca verter uma lágrima, entregou as chaves de sua casa à avó e pediu-lhe que tomasse conta de tudo até ela regressar. Pegou numa mala antiga que tinha sido do seu pai quando jogara futebol profissionalmente, até uma lesão grave o ter afastado, manteve o lenço enrolado no pescoço e só levou na mala dois ou três vestidos, um casaco grosso e a máquina fotográfica que era da mãe. Desligou o telemóvel e deixou-o em cima de uma mesa na sala. Abriu a porta de trás da carrinha para a Hydra entrar e arrancou sem destino, já com as lágrimas nos olhos. Não imaginou os anos que demoraria a voltar a sua casa.

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindo... Quero mais...

53 beijos saudosos

et oroda

JSemP