15.5.11

provincialismo e carros fixes

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Num dos dias entrei no perímetro do Centro de Congressos do Estoril dentro de um belo carro, um Mercedes descapotável último modelo. Antes de tentar entrar na faixa de rodagem destinada ao parque de estacionamento reservado, precipitaram-se sobre mim, e o carro, vários polícias com sorriso e postura amável que indicaram a direção com grande espírito de serviço e boa educação. Em seguida, vários jovens de fatinho ofereceram-me o dístico de Parque, que me incluía no grupo dos eleitos, e instruções, sorrisos, senhora doutora para aqui e para ali, ocupando-se de me arranjar um lugar e de me ajudar a estacionar ao lado dos outros Mercedes e BMW. E nem era eu quem guiava. Ninguém me perguntou o que ia fazer ali ou se tinha direito a parque reservado. No dia seguinte, entrei no mesmo perímetro reservado ao volante de um velho Twingo com o dístico ‘dos eleitos’ bem à vista. Os polícias mandaram-me logo parar com ar carrancudo quando tentei avançar para o parque, apesar de ter o dístico bem colocado. Onde é que pensa que vai? Disse onde é que eu pensava que ia. Um jovem carrancudo, olhando o dístico do carro com reservas, foi buscar uma lista e perguntou-me se estava ligada a alguma instituição. Consultou a lista, olhou para o carro, consultou o colega, e comecei a passar-me. Já tinha mostrado uma identificação, um cartão com uma fita a atestar que era speaker, ele continuava a procurar um modo de me expulsar do reservado. Disse que ia apresentar o último orador, Mohamed El Baradei. Não se deixou impressionar. Aí, um dos outros subitamente baixou a cara para me olhar bem e reconheceu-me. Tudo mudou. Disse-me logo para passar. Outro polícia carrancudo olhava para aquilo com desconfiança. Lá entrei no parque. Ninguém me ajudou ou arranjou um lugar de estacionamento.
Este pequeno filme português também podia e devia ser apresentado não aos finlandeses, mas a todos os portugueses. É o traço comum do nosso subdesenvolvimento. Os pobres curvando a espinha e tirando respeitosamente o chapéu da cabeça perante os fidalgos da casa mourisca. E, para ser rico, neste país, basta ter um bom carro. É símbolo do status. Não admira que não haja empresário pato bravo que não queira ter um Ferrari Testarossa. Se eu entrasse de Aston Martin não era eu que apresentava o Baradei, era ele que me apresentava a mim, segundo a ontologia daquelas cabecinhas dos jovens de fatinho que pululavam. O fato de Francisco Fukuyama, por acaso, era dos mais amachucados. Se entrasse com ele no Twingo punham-nos fora.
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Crónica: A mentalidade do criado, Clara Ferreira Alves

2 comentários:

bonifaceo disse...

É por esse tipo de pensamento que muito portuguesinho se endivida até mais não, quer ter sempre acima das suas possibilidades. Ainda ontem deu uma notícia de uns ex-ricos que tinham alta mansalidade de crédito. Tinham uma data de carros, com a crise, algo mudou e ficaram desempregados e os carros foram à vida (vendidos), mas o crédito por pagar não!

franksy! disse...

Sim... há uns tempos também li umas reportagens assustadores... alguns casos são de pessoas que tiveram mesmo azar, mas outros... havia uma senhora que pertencia ao governo e ganhava cerca de 15000€ por mês!!! quis-se reformar mais cedo e ficou com uma reforma de cerca de 1500€, mas continuou durante uns anos - e graças aos plafonds dos cartões de crédito - a viver como se continuasse a ganhar 15000€... hoje em dia, até fome já passou...