22.1.21

Doce de abóbora

A minha tia Aline morreu no dia 7 de Agosto de 2017. Era uma segunda-feira. Era o meu primeiro dia de férias. Eu estava a trabalhar noutra cidade e tinha andado a adiar a próxima visita. Ia ter tempo de a ir visitar. Nas minhas férias...

A minha tia Aline cozinhava muito bem. Era especialista em doçaria e fazia os melhores rissóis. Também fazia compotas. Fazia compotas de tudo. Compota de morango, compota de figo, compota de tomate, compota de framboesa, compota de amora, compota de maçã e, a minha favorita, compota de abóbora. Eu só comia a compota de abóbora. Quando ela distribuía as compotas pela família, as de abóbora ficavam reservadas para mim.

Quando a minha tia Aline morreu, havia uma compota de abóbora no meu frigorífico. E ainda há. 

Quando aquela compota acabar, não há mais. Eu nunca mais na vida vou comer compota de abóbora da minha tia Aline. 

Nunca acabei aquele frasco. Fui comendo outras compotas e aquele frasco foi ali ficando, na porta do frigorífico. Às vezes olho para ele. Não tem qualquer sinal de apodrecimento. Tem intacta a etiqueta branca em que ela escreveu "Doce de abóbora". 

Há uns meses percebi que não fazia sentido aquele frasco continuar no frigorífico. Mas também não o conseguia tirar de lá. Desde então que ando para pedir ao António, meu super herói, que o faça - ele, que nem reparou que estava um frasco de compota há mais de três anos no frigorífico - mas nunca consegui. Começava a falar e era como se as palavras, o meu raciocínio, fossem sugados para um buraco. Como se a força, a capacidade de falar, desaparecesse. Parecia quase um impedimento físico. Ontem, finalmente, consegui pedir-lhe. Chorei muito nos braços do António, sei que em breve aquele frasco vai deixar de estar no frigorífico. Sei que vou voltar a chorar quando me aperceber da sua ausência. Mas também sei, há muito tempo, que, independentemente daquele frasco ali estar, eu nunca mais na vida vou comer compota de abóbora da minha tia Aline... 

 

 


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